domingo, 11 de novembro de 2012

Tempestade


Parque Indígena do Xingu, Aldeia Yawalapiti, 05 de outubro de 2012*

Tarde chuvosa aqui na aldeia. Quando fica assim, o que sobra pra maioria fazer é ficar em casa dentro da rede. 

Céu escuro e muita chuva, mas essa chuva é boa "chuva verdadeira" como dizem por aqui. Chuva verdadeira pois vem tranquila, mansinha, sem ventos fortes, raios e trovões. É essa chuva que é boa pra molhar o chão, e dar força praquilo que já foi plantado.

Diferentemente do que acontece hoje, duas semanas atrás, passou uma tempestade pela aldeia. Ventos fortíssimos, muita chuva e grazino. O resultado de tudo isso foi a derrubada de quase todo o pequizal que estava ao redor da aldeia, e a destruição total de quatro casas (uma delas foi a Casa dos Homens).

Vou tentar relatar aquela tarde:

Estávamos na mata, ao lado da pista de pouso do Posto Leonardo (Cacique Aritana, Caqique Waripira e eu), pois procurávamos fruto de Pindaíba. Depois que saimos da mata, fomos ao posto encontrar o rapaz que estava nos esperando pra nos levar até a aldeia. Conversamos um pouco por lá, e vimos que uma chuva estava se formando pro lado da aldeia. Fomos embora logo pra que não fóssemos apanhados pela chuva no meio do caminho.

Quando estávamos chegando na aldeia, os pingos de chuva começaram e até comentamos que seria bom pras roças que acabaram de ser plantadas. Na aldeia, a chuva já estava mais forte, porém, nada preocupante. Ao entrar na casa do Cacique Aritana pedi pra ele uma panela, pois iria cozinhar arroz com pequi, e traria pra família dele jantar. Ele falou pra eu ir pra casa, ver se num tava entrando água em casa (minha casa tem algumas goteiras), que ele pediria pra alguém me levar a panela.

Logo depois que cheguei em casa, estava tirando tudo debaixo das goteiras, foi quando começou a ventar mais forte e chover torrencialmente. Em seguida veio um forte vento que levantou parte da cobertura da minha casa - e foi ai que comecei a ficar assustado (pra quem morou 8 anos em Campinas-SP e acostumou a ver as tempestades de verão que caem por lá, não ficaria assustado com qualquer chuvinha - mas confesso que fiquei com medo naquele momento). A minha única ideia foi ficar na porta de casa, onde conseguiria ver todas as árvores que estavam ao lado e na frente da minha casas pois, se alguma delas viesse a cair pra cima da minha casa, eu conseguiria correr pra longe. 

Através da porta da minha casa, e da parte do telhado que fora descoberta, vi tudo que aconteceu nos próximos minutos, e foram cenas muito fortes. O que não consegui ver durante a tempestade é que o Pequizeiro e o Cajueiro que tinham atrás da minha casa cairam, e o pé de pequi ficou a menos de 1 metro de cair sobre a casa. Logo depois disso, veio um segundo vento muito forte e consegui ver os pequizeiros que ficam na frente da minha casas terem seus galhos maiores quebrados com uma facilidade, que pareciam gravetos, e vi também as mangueiras balançando muito, dando a impressão que cairiam, e vi a cena mais forte, que foi a casa do meu primo Chuck caindo. Não sabia o que fazer ou pensar quando, vendo tudo aquilo,  começou a cair granizo, que chegou a entrar em minha casa pelo telhado descoberto. Foram visões desesperadoras. Logo em seguida, o vento e a chuva forte pararam.

Ainda da porta de casa vi o Cacique Aritana correndo, e fui correndo pra ver onde ele estava indo, e foi ai que vi a casa do Cacique Macawana também no chão. Subimos pelo telhado e vimos que ainda tinham pessoas dentro de casa quando tudo caiu. Começamos a tirar pedaços de madeira e palha pra tentar tirar as pessoas de detro, quando vi um dos flhos do Cacique chorando, abraçado à sua esposa. Pensei que sua filhinha tinha morrido, já que ambos estavam chorando sobre ela, além de ter várias pessoas chorando em volta. Quando coneguimos tirar tudo de cima deles, e conseguir entrar, ficando ao seu lado, vi que a criança estava mamando no peito da mãe - fiquei aliviado. 
Falei para um outro filho do cacique, que tínhamos que tirar eles dali. Ele pegou a criança e saiu com ela. Ajudei a tirar a mãe e o pai da criança lá de dentro, por cima do telhado. Depois subi no telhado pra conseguir sair da casa. Estando lá fora, carreguei a mãe do bebê nos braços até minha casa e a coloque sentada. Voltei para pegar o pai da criança e o coloquei ao lado da sua esposa. Logo em seguida, a criança chegou em minha casa, sendo trazida pelo tio. Cobri os pais e a filhinha com um cobertor. Logo depois, chamei o tio da criança pra subirmos no telhado de minha casa e amarrarmos a lona que tinha sido solta pelo vento.

Depois disso, começou todo o trabalho de trazer todos os que ficaram desabrigados, das duas casas, para minha casa.  Não consigo lembrar o número exato, mas creio que, naquela noite, dormiram cerca de 20 pessoas, entre velhos, crianças e adultos. Durante esse momento de trazer as pessoas, e tentar pegar tudo que seria possível nas casas, vi que a Casa dos Homens e uma outra casa tinham sido derrubadas.

Tivemos que entrar nos escombros das casas pra tentra pegar as redes, onde as pessoas dormiriam, e tentar cobrir todo o polvilho que estava guardado dentro das casas que sairam (este polvilho é a reserva de comida das famílias durante o período de chuva, que vai até março), o que deu muito trabalho.
Como não conseguimos pegar rede pra todos da casa, o filho mais velho do Cacique Aritana veio ao centro da aldeia pra pedir doações de redes e cobertores, já que as pessoas estavam sem ter onde dormir e se cobrir.

Dentro de minha casa, comecei a emprestrar minhas roupas secas pra quem estava molhado e não tinha outra roupa pra trocar, além de emprestar todos os lençois e cobertas que tinha. Somente depois da noite escura, é que consegui tomar banho e colocar uma roupa pra tentar dormir - o que não foi fácil. A noite foi horrível, com pesadelos e aquele choro quase contínuo das mulheres e crianças. Tive que dormir com calça e blusa de frio, já que fique sem coberta, pois tinha emprestado todas que eu tinha. De vez em quando acordava assustado, pensando que tinha tido um pesadelo, e lembrava que tinha acontecido de verdade. De fato, a noite foi péssima.

Foi somente no outro dia pela manhã que conseguimos ter noção real de todos os estragos, e foi quando conseguimos a abrir as casas derrubadas, com facões, machados e moto serra, pra tirar tudo que coseguíssemos. Um dos mais velhos da aldeia disse que nunca tinha ouvido falar de uma coisas daquelas, nunca.

Hoje, duas semanas depois, e com quase tudo limpo, estamos prontos pra começar a recontrução.
Já fomos tirar as grande madeiras que servirão de estrutura das duas novas casas a serem contruidas, e vamos começar a tirar as demais madeiras necessárias. Mesmo depois de todo o trabalho que já foi feito, ainda falta muito serviço a se fazer. Construir casas indígenas não é fácil!

Aos poucos, a vida toma ares de normalidade. A lembrança daqueles momentos não será apagada da cabeça das pessoas de jeito nenhum. Da minha, pelo menos, não.

Saudações Xinguanas

* este foi escrito realmente no dia 05 na Aldeia Yawalapiti, mas estou publicando aqui no Posto Leonardo, já que desde a tempestade estamos sem conexão na aldeia.

2 comentários:

Bixão disse...

Putz, a coisa foi feia mesmo hein?!
Boa sorte na reconstrução!

Abraços,

Luciana Vieira disse...

Caramba Porcao... que doido isso...
Boa reconstrucao, juntos somos mais fortes!
Beijao